Wednesday, September 07, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLXV





"Self-Portrait with Death Playing A Violin (detail)", Arnold Bocklin, 1872, e o cantor John Grant.

Tuesday, August 16, 2011

Husbands-in-law




Husbands-in-law. Maridos por afinidade. Foi assim que George Harrison e Eric Clapton batizaram seu parentesco. Nome que teria sido de grande utilidade se inventado décadas antes. Porque Friedrich Nietzsche saberia então como se referir a Paul Rée. O outro marido de sua mulher.


Pena (ou sorte) que o célebre pensador não conheceu Pattie Boyd. A musa inspiradora do vocábulo. E de duas das mais famosas músicas da História.


A inglesinha Pattie era modelo da Vogue. Em A Hard Day's Night, primeiro filme dos Beatles, fez uma pontinha como fã stalker. Ironia. Porque em 1964, explosão da Beatlemania, ela nem dava bola para a banda. As inconformadas amigas não queriam acreditar: foi pedida em casamento e disse não. Para George Harrison! No dia em que ele a conheceu! E mais espantoso: o guitarrista ainda estava disponível quando Pattie cedeu e aceitou novo convite, para um encontro. Casaram-se em 1966. A confusão iria começar uns anos depois, com a chegada de outro músico.


Não foi fácil para Eric Clapton. Roubar a garota do amigo - e um amigo beatle - exigiu algumas manobras. Nem todas muito honrosas. Tipo namorar a irmã de Pattie, para ter proximidade com a amada. Compor Layla para convencê-la a ficar com ele. Até chutar de vez o pau da barraca, abordar o casal em uma festa e comunicar George que sim, estava apaixonado por uma mulher. Que, infelizmente, era a dele.


Tamanha insistência não foi em vão. Anos mais tarde Pattie e Eric se casaram! Ele esperou. E alcançou.


Friedrich Nietzsche não precisou esperar. Lou von Salomé tomou a iniciativa no dia em que o conheceu. Isso, em 1882. É que Nietzsche mandou bem no xaveco: "De que estrela caímos, para nos encontrarmos aqui?" A reação de Lou veio na forma de uma proposta incomum.


Agora imagina só a cena. Você, sério e respeitado filósofo alemão. Batendo nos quarenta anos. Fechadão, bigodudo. Só sua mãe te acha bonito. Um perfeito nerd do século XIX. Um belo dia, a sorte lhe sorri. Uma menina russa, lindalinda, inteligente, quer saber. Você viveria com ela? Nietzsche não pensou duas vezes. Siiiiimm! Você dedicaria seu tempo a ela, que o considera um gênio, ensinando e discutindo seu hobby predileto? Filosofia!? Siiiimm! Você viajaria com ela pela Europa, para aperfeiçoar seus conhecimentos? Siiimm! Então, fechado. Só um detalhe: no casamento não vai rolar aquela atividade suja, bestial e profana chamada sexo. Tudo bem pra você? Sii......hã? Espera. Acho que ouvi mal. Dá para repetir? Pois não. Casamento casto, querido. Para quê comunhão de corpos, se a das mentes já é prodigiosa? Mas....Sem "mas". Ah, já ia me esquecendo: nas viagens, mamãe vai junto.
Nietzsche, apaixonado, disse sim a tudo.


E não só ele. Lou queria um casamento informal. A três. Só que, para o azar de Nietzsche, a terceira pessoa não seria outra russa maravilhosa, talvez com a cabeça um pouco mais aberta - e o corpo bem menos fechado. Paul Rée foi escolhido para segundo marido. Também já havia concordado com os termos de Lou. Então, nada mais bonito do que selar união tão produtiva com uma....foto! Essa. Repare em Paul Rée e sua expressão resignada de pois é, tem jeito?. Nietzsche fitando a paisagem, com cara de paisagem. Os dois na frente da carroça, como mulas. Lou sentada, segurando o chicotinho. Imagem autoexplicativa. Quando Rée recebeu a fotografia, comentou com Lou: "Nietzsche está soberbo; você e eu, monstruosos, podemos discutir sobre quem deveria ganhar o prêmio de feiúra". Que acinte. Pena que, por uma questão cronológica, tenha sido impossível para Lou replicar: "Pelo menos eu não sou a cara do Phil Collins!"


Naquele ano de 1882, Nietzsche foi todo amor. Feliz com as atenções de Lou, ansioso na ausência dela, inseguro e emotivo. Adotou como lema a máxima filosófica "se a vida lhe der um limão, faça uma limonada". Tentou ignorar Rée, expôs seus sentimentos a Lou: "Tenho pensado muito em você, e dividido com você, em pensamento, muito do que é elevado, interessante e alegre (...). Se você soubesse quão novo e estranho isso parece para um velho eremita como eu! Quantas vezes isso tem me feito rir de mim mesmo!". Nietzsche, como músico, era ótimo filósofo. Mas a falta de jeito não o acanhou. Quando Lou escreveu o poema "Hino à Vida", o pensador logo compôs um fundo musical para acompanhar os versos "se você não tem mais felicidade para dar/dê-me a sua dor". Funny. Eric Clapton não conseguiu ser assim tão conformado. Pegou o limão, fez uma caipirinha, encheu a cara, mergulhou no vício. "Seu silêncio quer dizer 'vai embora'?" O bilhetinho secreto escrito para a então casada Pattie Boyd transparecia a angústia do moço.


Só que, no futuro, a chatice e insistência de Clapton ainda iriam recompensá-lo. Enquanto isso, lá em 1882, Lou recompensava assim o marido, ao comentar com a cunhada: "Posso passar uma noite inteira em um quarto com Nietzsche, sem sentir a mais leve tentação de pecar". Elisabeth, que não suportava Lou, indignou-se. E tomou a mesma atitude que tomaria uma mulher sensata, moderna e evoluída do século LXIX. Foi correndo contar para o irmão. E nem assim adiantou. Ele ficou meio magoado, óbvio. Mas não desistiu de Lou.


Lógico, não muito tempo depois, quem desistiu foi ela. Causa: Nietzsche estava sendo desleal com Paul Rée. Falava mal do filósofo, tentando converter Lou à monogamia (de preferência, impura). A maledicência foi também a estratégia que Eric Clapton escolheu para diminuir George Harrison diante dos olhos de Pattie. Ou melhor, ouvidos. Na letra de Layla (música que na verdade se refere a Pattie), vem lá o cutucão: "I tried give you consolation/when your old man had let you down". George vivia mal humorado devido ao uso de cocaína. O roto falando do rasgado.


Mas Lou, ao contrário de Pattie, não deixou barato para o difamador. Afastou-se de Nietzsche. Que, aflito, mandou para ela um bilhete à moda claptoniana: "De tempos em tempos nós vamos nos ver de novo, não vamos? Não se esqueça de que, deste ano em diante eu me tornei subitamente pobre de amor e consequentemente muito necessitado de amor". Não comoveu. Foi quando, de fato, Nietzsche chorou. E resolveu assim se lamentar com, justo quem, Paul Rée: "Gostaria de apagar a memória deste doloroso ano por inteiro - não porque ele me ofende, mas por causa da Lou em mim".


Bom, e já que Nietzsche já não tinha mais felicidade para dar, deu a Lou a sua dor. Junto com rancor, ressentimento, orgulho ferido. Chamou a russa de "fera predadora que se faz passar por animal doméstico", "uma monstruosidade, um cérebro sem alma", "essa macaca seca, suja fedorenta, com seus seios falsos". Que coisa. Passou dos limites, concorda? O que seriam seios falsos, no século XIX A.S. (antes do silicone)? Limões? E como Nietzsche sabia que não eram originais de fábrica? Espiou trocas de roupa pelo buraco da fechadura? Viu sutiãs com enchimento pendurados no varal? Será que Lou revidou tamanha ofensa à sua anatomia? "Se liga! O despeitado aqui é você!" seria uma boa resposta.


Seja por excesso, ou por falta, não há dúvidas de que a paixão inspira. Não foi só Eric Clapton que escreveu Layla para sua musa Pattie. Um pouco antes, George Harrison já havia composto Something, a segunda canção mais regravada de todos os tempos, homenageando a mesma garota. Nietzsche tentou se curar investindo no trabalho: tomou o pé de Lou e seis meses depois já tinha redigido metade de Assim Falou Zaratustra, obra fundamental da filosofia. Além de meter o pau no falso moralismo cristão (por que será?), a dor-de-cotovelo nietzschiana ressoa no livro, que conta histórias fictícias sobre as andanças e pregações do profeta persa Zaratustra, fundador do zoroastrismo. Nietzsche defende a solidão e espalha pela obra alertas contra o ciúme, a necessidade da autossuperação como anestésico. E propaga o ideal de super homem a ser atingido, um ser capaz de abstrair o sofrimento que aflige o homem comum. Ou seja, ao invés de comprar e ler, Nietzsche foi menos prático: escreveu seu próprio livro de autoajuda. E colocou umas frases ferinas na boca do finadíssimo profeta, espetando Lou. Pois é, assim falou Zaratustra: "A Mulher não é ainda capaz de amizade. As mulheres ainda são gatas e aves, ou, na melhor das hipóteses, vacas". "Vai ver mulheres? Não esqueça o chicote!"


E Paul Rée? Se deu bem, depois que metade de seu casamento informal dissolveu-se pelo "divórcio"? Bom, em 1886 Lou se casou. Para valer. Com outro. Friedrich Carl Andreas, um linguista atarracado e barbudão. Parecido com Eric Clapton. Não?


Bom, matrimônio para valer no papel. Não nos lençóis. Só que Lou não teve tempo de tranquilizar Rée com a garantia de que o sistema continuava o mesmo da época de Nietzsche. O filósofo se despediu por bilhete: "Tenha piedade - não procure por mim".


Ao contrário de Lou, foi Pattie Boyd que botou pontos finais em suas duas uniões. George Harrison dançou não exclusivamente por causa de Eric Clapton, mas porque pulou a cerca. Com a mulher de Ronnie Wood, dos Rolling Stones (e os traídos deram o troco, juntos), e com a mulher do Ringo! Eric Clapton tomou um pé de Pattie depois que engravidou uma italiana.


Após a partida de Paul Rée, Lou sentiu-se incompleta. Casada-solteira não era seu ideal de estado civil. Ela queria ser casada-casada. Nova oportunidade surgiu quando Lou, aos trinta e seis anos, conheceu o poeta Rainer Maria Rilke, de vinte e dois. Rilke era fã de Nietzsche e logo caiu de amores pela ex do seu ídolo. Problema solucionado: Rilke tomaria o posto vago por Rée. O moço se mudou para a vizinhança de Lou e Andreas, e os três iniciaram o novo relacionamento. Lou fez uma pequena mudança nas regras: relação espiritual e platônica, só com um dos maridos. O fato de Rilke ser loiro, olhos azuis faiscando no belo rosto jovem, certamente não pesou quando Lou decidiu que a ele caberiam os assuntos mundanos. Foi mera coincidência.


Lou morreu aos setenta e cinco anos. Antes disso, ainda teve tempo de fazer com que Freud se encantasse por ela. Não era fraca, não. Nem um câncer de mama a abateu. Operada, ela declarou que Nietzsche não estivera totalmente errado. A partir de então, seu seio seria mesmo falso.


Pattie continua viva. Fotógrafa, briga com uma editora pelos direitos autorais da sua autobiografia, onde não faltam histórias de amores bem e mal resolvidos. Afinal, são justamente esses deliciosos, divertidos, tocantes e trágicos episódios que empurram a humanidade, não? Que igualam e aproximam homens e mulheres de variadas épocas, culturas, idades, profissões. Lou, Clapton, Nietzsche, George, Rée, Pattie, Rilke. Todos perceberam que o amor nunca é uma aposta segura. Exige concessões. Acomodações e adaptações. E, quando acontece, pode ter um formato um tanto diferente do imaginado e desejado. À maneira de cada um, todos aprenderam que amar, ou ser amado, é um ato de coragem. Arriscar o coração é farejar uma chance de felicidade. E, sem pensar demais, pegar - ou largar.


Bom, quase todos.


Nietzsche foi exceção.


O único que não pegou.


E foi largado.




(P.S. O imbroglio de Lou e seus homens eu conheci graças a um capítulo do "Livro das Musas", da Francine Prose. Pattie e seus guitarristas também são um capítulo, parte do bacaníssimo "The Girl in the Song", de Michael Heatley e Frank Hopkinson. Os dois livros valem muito a pena).

Wednesday, August 10, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLXIV





"Fountain of the Great Lakes", de Lorado Taft, e a cantora Isobel Campbell.

Saturday, June 11, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLXIII





"Il Vecchio", de Medardo Rosso, 1883, e Mark E. Smith, vocalista do The Fall.

Wednesday, May 25, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLXII




"Bishop Ryder Monument", de Sir Francis Legatt Chantrey, 1841, e Mick Harvey, guitarrista do The Birthday Party.

(Sorry pela foto pouco nítida. Não achei uma melhor. Ah....twitter normalizado)

Wednesday, March 30, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLXI



Anita Rée, self portrait, 1915, e Justine Frischmann, vocalista e guitarrista do Elastica.

Tuesday, March 22, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLX



"Banhista Sem Braço", de Aristide Maillol, 1921, e o cantor de rap Eminem.

Saturday, March 19, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLIX


"Coco", de Auguste Renoir, 1908, e Liam Gallagher, vocalista do Oasis.

Saturday, March 05, 2011

Wedding Dress



Calma. Deixa explicar. Seguinte: isso é um bobblehead. O homem. Quer dizer, o Mark Lanegan. Que mais parece o Stephen Malkmus, não? Bom, é um boneco cabeçudo de resina, com os pés colados em uma plataforminha. Tá, é ridículo, eu sei, não precisa ficar me lembrando. Já basta minha mãe. Eu vi em um show, vendendo. Primeiro eu ri. Depois fiz pouco. "Ter isso seria o cúmulo da indignidade". Aí, enquanto o Lanegan cantava no palco, a sábia voz da consciência entoou seu mantra na minha cachola sem juízo. "Vocênãovaicomprarvocênãovaicomprarvocênãovaicomprar...". E eu não comprei.
Naquela noite.
Loja virtual, porque você existe, hein? Enfim. Ele chegou em casa, a diarista me zoou, guardei na gaveta dos vestidos que não amassam. Tive medo de colocar na estante de livros. Vai que quebra. E eu não consigo dormir com gente me olhando.
Eu sou maluca por bonecas. Bonecas tipo mocinhas, não bebês. As mais lindas da face da Terra são verdadeiras obras de arte: Marina Bychkova leva nove meses para montar uma joia assim. Quer uma? É só vender o carro e pagar. A russa mete a faca. Mas os chineses, graçasaDeus, não. Então não resisti e adotei essa noivinha meiga aí de cima. Tirei Lanegan doll do castigo, catei a capa do I Feel Alright, vinil do Mike Johnson, e fiz uma montagem indie-pobre inspirada nos casais de bonecos da Bychkova.
Foto com tema. Wedding Dress. É a terceira faixa de Bubblegum, último disco solo do Lanegan. Esse álbum foi gravado entre 2003 e 2004, quando ele estava se divorciando da Wendy Rae Fowler. A ex é atriz e cantora. Canta bem pra burro aliás. Faz uns anos ela soltou umas músicas na web, por uma banda/projeto/pseudônimo, ou sei lá, chamado Katie Cruel. Não dá para ouvir a lindaça "Hollow" e não lembrar (dos bons tempos) da PJ Harvey. Atualmente a moça é metade da dupla We Fell to Earth. Pois bem, parece que o fim do casamento foi iniciativa dela. Cansou do vício do marido, das farras com os amigos, da ausência prolongada do lar. Segundo consta, Lanegão ficou MAL. Bem mal. Wedding Dress é um pedaço amargo da dor-de-cotovelo de Mark Lanegan. Um esforço desajeitado e meio patético de consertar aquilo que já se sabe inconsertável. Um apelo alcoolizado do cara que liga no meio da madrugada, implorando para ser aceito de volta. Uma tentativa tardia de arrancar o "sim" de uma boca que, exausta de tanto perguntar, se recusa agora a responder. Eu adoro Wedding Dress. Porque a letra exagerada, esbarrando na cafonice e ironia, é carregada por aquela irresistível melodia blues rock que o Lanegan faz à perfeição. Porque a voz dele atinge o tom exato de constrangimento, dor contida, medo da solidão iminente e inevitável. Porque é um dueto melancólico. E absurdamente sexy, do primeiro ao último segundo. Porque é uma música pouco executada em shows, já que exige uma parceira - nem sempre à mão - no palco. Porque a versão de estúdio torna tudo mais penoso: é a própria voz da Wendy, delicada, se confundindo à mágoa de um Lanegan que arrisca tudo por uma última chance..."the end could be soon, we'd better rent a room, so you can love me...". Porque a versão ao vivo, com a voz da bonita Shelley Brien, resultou no vídeo de maior tensão sexual entre um homem e uma garota. Lado a lado no palco, os dois mal se olham. Mas, de uma forma indizível, se entendem por completo.


Sem mais, Wedding Dress. Enjoy.

Would you put on that long white gown
And burn like there's no more tomorrows?
Will you walk with me underground
And forgive all my sicknesses and my sorrows?
Will you be shamed if I shake like I'm dyin'
When I fall to my knees and I'm crying?
Will you visit me where my body rests?
Will you put on that long white dress?
Ba dadada, da, badadadada dadada
Ba dadada, da, badadada
The end could be soon, we'd better rent a room
So you can love me
Will you put on that long white dress
While I burn when there's no more tomorrows?
Will you remember me through the years I'll miss
And forget all the sadnesses and the sorrows?
Ba dadada, da, badadadada dadada
Ba dadada, da, badadada
We got buried in the fever
Now you love me
Get a room, so you can love me

Thursday, February 17, 2011

OKAY







Cutuquei a Lisa. "Lá, ó, atrás de você. Tá vindo". Ela arregalou o olho, prendeu a respiração. "Já vi". As duas quietas. As três, quero dizer. A baixinha Padminia parecia uma estátua. Ele passou pela nossa esquerda, segundos depois de bater a porta do prédio. Troço engraçado, aliás: a portaria do prédio residencial é também a porta de saída lateral da venue. Da casa de shows. A construção é a mesma. Então imagine só, o morador, saindo no corredor para recolher a correspondência, pantufa no pé, calça de moletom com elástico bambo na pança. E dá de cara com o cidadão: gorro enterrado na cabeça, mãos totalmente enfiadas nos bolsos do jeans, mochila estufada nas costas. Uma puta cara de poucos amigos. Vai pensar que entrou ladrão no condomínio. E não que o ogro em questão, uma hora e meia atrás, cantava no salão de festas.
Mark Lanegan tem quarenta e seis anos, mas caminha como um moleque de dezesseis. Tipo garoto que saiu pra rua logo depois de uma briga homérica com o pai. Encurvado, jogando o corpo para o lado, daquele jeito prestes a encher o pé e descarregar a raiva no latão de lixo da esquina. Nós três, mudas e paralisadas. Só nossos olhinhos se movendo na mesma direção, a que ele seguiu. Como naqueles quadros pendurados em paredes, nos filmes de mansões mal assombradas. Mesmo a cinquenta metros de distância deu para ouvir o estrondo quando ele arrancou a mochila do ombro e a jogou no chão, nada delicado. Encostou no muro do Shepherd's Bush Empire, esticou as pernas formando um triângulo com a parede e a calçada. E lá ficou, na rua vazia. Silêncio. E vem a Lisa e diz o óbvio ululante. "Tá de mau humor". Silêncio de novo. E agora, meninas? Alguém se habilita a cutucar a onça? "Ah....dane-se! Eu vim do Brasil, pô!". E lá fui eu, correndo, arriscando tomar um coice. Cheguei perto. Ele me viu. Continuou exatamente na mesma posição, impassível. Não sorriu. Olhou pra mim como se me visse todo dia, normal. Nada de oi. O que eu ouvi, de uma voz meio sussurrada, com a mesma entonação emocionante de quem diz "o preço do pão francês subiu" ou "a capital da Bulgária é Sófia", foi:

"Você mudou o cabelo."

Recuei um passo, meio surpresa. Por instinto minha mão subiu até a cabeça, agarrou a franja. Sim. Mudei o cabelo. Mas peralá. Ele já me viu assim antes. Seis meses atrás. Até reclamei aqui que ele não tinha comentado nada. Bom. Agora comentou. Satisfeita?
Claro que não! Meio ano pra notar, pô! Tudo isso! Ou ainda pior: passa meio ano e ele esquece que me viu!? Foi só meio ano, putz grila!
Humpf!
E foi aí que a luz se fez, revelando a dura verdade diante dos meus indignados olhos: Mark Lanegan é um homem.
Portanto, um ser devagar.
E como homem que é, mereceu ser tratado como seus pares, quando o assunto é falta de sensibilidade para com o visual feminino. Com impaciência.
Ainda com os fios entre os dedos, questionei, em alto e bom som anglossaxão:
"E TÁ BOM?"
Não foi bem o pedido de uma opinião. Era ordem de uma afirmação, oras. E ele sentiu que o tempo fechava. Que alguns relâmpagos já anunciavam a tempestade. E ele podia evitar o temporal. Era só soprar as nuvens com força, para a direção contrária. O sol voltaria a brilhar no meu rosto. Vai, Mark Lanegan. Capricha. Tô esperando, não me decepcion....

"Tá...okay".

What. That. Fuck...man!?! Okay!? Seja mais específico: em uma escala de zero a dez, quanto é isso? Okay, pra mim, é um mero aceitável, um satisfatório. Passável. Enfim, um okay é só okay, PQP! Posso sair na rua sem assustar criancinha, então? Que ótimo, hein Lanegão. Que okay!
"Toma, trouxe pra você.". Antes que eu me arrependesse, tirei da bolsa e joguei na mão dele o livro da vez. É que, a todo show que vou, dou um livro de presente para o Lanegan. Ele leu o título. Mais pra lá na rua, a Lisa observava tudo, esperando para ver se o boi de piranha (eu) seria ou não escorraçado pela fera com um rugido supersônico. Mais tarde, no fim da noite, a Lisa me diria que ela sacou o sinal verde quando ele pegou o livro. Porque a fisionomia mudou, iluminada. Foi aí que ela e a Padminia, stalker caloura, resolveram se aproximar da gente. Sem tanto medo.
Pudera, vai. Você não sorriria se ganhasse um livro de culinária? Mas não culinária gourmet, lógico. Culinária neanderthal mesmo. O nome desse guia indispensável ao homem glutão é genial. "Mosh Potatoes", compilado pelo produtor Steve Seabury. Trocadilho com "mash", purê. "Mosh" é aquele salto que o pessoal dá em shows de rock, pulando do palco e mergulhando na plateia (a Annix querida me corrigiu: no Brasil, chamam o stage dive de mosh. Mas na verdade o mosh é o empurra-empurra conhecido por "rodinha"). É que as receitas do livro são todas sugestões de caras que tocam ou cantam em bandas de heavy metal. Coisa fina.
"Você gosta de cozinhar?"
"É...um pouco."
Traduzindo para o português: "Não cozinho lhufas".
Hehe. Tudo bem. Ou melhor, tudo OKAY. As 150 receitas mostradas no livro não exigem prática nem tampouco habilidade. Pelo pouco que folheei do guia, qualquer macho com potencial para flechar um javali, esquartejar a perna do bicho com os caninos e botar a pata para rodar sobre o fogo apoiada entre duas forquilhas de madeira não terá dificuldade alguma em preparar os PFs do "Mosh". Entendi a felicidade do Lanegão diante de oferenda tão útil. Ah. Mesmo assim, bom esclarecer um ponto. Até mesmo para deixar bem claro que, em caso de tragédia, a culpa não será minha. Eu alertei ele. Dentro do livro, um recado meu. Escrito em um postal bonitinho, com um gato chinês gordo contemplando uma borboleta. "WARNING. Prometa para mim que você NÃO VAI testar a receita do Lemmy! Combinado? Eu não vou me perdoar se você destruir as cordas vocais".
A receita do Lemmy, o gracioso vocalista e baixista do Motorhead, é uma gororoba doce. E salgada também. Mistura, com elegância, farinha, xarope de chocolate, de morango, curry e....tutu de feijão. E brandy, pois a hã, como diria, comida, é flambada. Como tantos outros pratos da culinária mundial. O diferencial, todavia, é que o mimoso Krakatoa Surprise é preparado para ser deglutido enquanto a lava (no caso, o xarope de morango) arde em chamas. Como esse demente aqui faz. Portanto, se no próximo disco solo Mark Lanegan surpreender os fãs com uma nova voz, assemelhada à do Pato Donald, não foi por falta de aviso. OKAY?

Lisa cumprimentou o Lanegan, Padminia só olhava, tímida. Aquele impacto da primeira vez. Lisa, curiosa: "Mas o que você tá fazendo parado aqui?". "Esperando ônibus". Lisa com ar professoral que quase me fez rir: "Bom, você tem noção de que aqui não é ponto de ônibus, não é?". "É que falaram para eu esperar nesse lugar.". "Quando é que você vai voltar para São Paulo?". Eu adoro atormentá-lo. "Ah...não sei ainda.". "Você gostou da cidade?". Se fosse eu a gringa, teria odiado, he (sendo paulistana, reclamo mas gosto). "Eu mal tive tempo de ver...". "Onde você foi, lá?". "Ai, não sei te dizer bem...". "Algum museu?" (eu sabia que ele tinha ido ao MASP). "É, museu eu fui.". "Qual?". Pergunta maldosa, hehe. Já saquei um troço no cara: fica preocupado em te chatear quando não tem resposta a uma pergunta que ele acha que é importante para você. "Ai, desculpa, não sei...". Ajudei. "MASP, em uma avenida grande?". "Não sei....é um....é um que tem...uma escada".
Ah, agora sim facilitou. Museu com escada. Cabelo okay. Graças a Deus ele não usa esse vocabulário rico para compor letras de música.

A Lisa fez algumas perguntas sobre show em Bristol, cidade dela. Parece que vai rolar um lá, com a Isobel Campbell. Depois disso....eu não lembro muita coisa. O vinho que havia tomado com a Lisa, em um pub, deu aquela subida. A única recordação - que eu preferia esquecer - é do meu discurso no meio da calçada. Jesus. Logo eu, que mal balbucio palavras em português, discursando em inglês. Pelo pouco que ficou na minha memória, não foi nada na linha do "você não sabe como você é importante para mim". Foi mais humilde. Tipo "você não sabe como tem sorte de ter os fãs mais legais do mundo: nós". E falei bem da Lisa, da Padminia (e de nossa sólida amizade de quinze minutos atrás), da molecada no Brasil (Iaguinho, Maria, Claudio....), nos EUA (Guy), na Argentina (Clara). Típico discurso de briaco, com aquele papo de "te considero muito, você é muito meu amigo". Só que eu deixei claro que o amigo não era ele, e sim os outros, gente que eu encontrei no mundo por causa dele. Que mico, meu São Judas. Eu, contando que ele era uma boa ponte para conhecer pessoas. E ele riu e me agradeceu no final. Ainda não entendi bem do quê, mas OKAY.
"Meninas, vou indo.". Lisa abriu os braços. "Posso te abraçar?". Lisa, tu é a inglesa mais brasileira que eu conheço, hehe. "Pode, claro". O curioso de se abraçar alguém muito mais alto (e olha que eu tenho 1,69m) é que você não abraça. Você se pendura. Fica aquela coisa ridícula meio a tiracolo, com um braço seu escalando o ombro do sujeito, tentando fazer a curva do pescoço, e o outro braço passando por baixo do sovaco do poste. É uma posição de filhinho de macaco sagüi (trema, jamais te abandonarei) preso ao peito da mãe. Patético. Com a Lisa e comigo ele não teve grandes dificuldades. Somos mais altas do que a Padminia. Impagável a cara do Lanegan estudando qual o melhor jeito de abraçar aquele um metro e meio. Se ele não dobrasse as costas em um ângulo de quase noventa graus, perigava ganhar um abraço na altura da bunda. Ia ficar meio estranho.
Foi aí que eu, até então de costas para a rua, virei e tomei um susto. Estacionando junto ao meio fio, um transatlântico. Inteiro azul, o maior ônibus de turnê que já vi. Minutos depois a Lisa comentaria a vergonha. "Pensei que ele estava esperando ônibus, não O ônibus!". E ficamos as três lá, boca aberta. Não dá para explicar. Mas se houve um momento totalmente surreal em todas essas vezes em que encontrei Mark Lanegan, foi aquele. Ele na nossa frente, pernas separadas, mochila na mão esquerda, esperando o motorista acabar de estacionar, devagar. De repente a gente toma consciência de que o cara não carrega nos ombros apenas quinquilharias de mochila. Leva também o peso de um passado, que já virou História. E peso de histórias de uma época que marcou qualquer um que goste de música, de rock. Está tudo lá, naquela carapaça inquebrável de homem que não consegue esconder pequenos gestos e reações de uma alma eternamente presa a um desconforto e insegurança adolescentes. Para mim, Mark Lanegan nunca foi tão grunge como naquele instante, prestes a subir em um ônibus. Do meu lado, Lisa leu meus pensamentos. "Parece um errant schoolboy".
Não. Não parece. É. Ainda. E vai ser sempre assim.
Tomara. Por mim, tudo okay.

Thursday, February 10, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLVIII



"Study for the Head of Julius Caesar", 1520-1521, de Andrea Del Sarto, e Josh Homme, vocalista e guitarrista do Queens of the Stone Age.

Tuesday, February 08, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLVII



"Portrait of a Youth", de Alessandro Algardi, 1630, e Layne Staley, vocalista do Alice in Chains.

Saturday, February 05, 2011

Friday, February 04, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLV




"The Little Red Glove", de James McNeill Whistler, 1896-1902, e Eleanor Friedberger, vocalista do Fiery Furnaces.

Thursday, February 03, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLIV




"Demon", de Mikrail Vrubel, 1894, e Joey Ramone, vocalista dos Ramones.
(Joey Ramone não tirou fotos com olho nu. Nasceu, viveu e morreu de óculos. Sorry, faz de conta que a escultura tem um, tá. Ou você iria preferir que eu botasse o Brian May, do Queen, no lugar?).

Wednesday, January 05, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLIII



Michael Foley, 1912-1943, self-portrait, e Bob Hardy, baixista do Franz Ferdinand.